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terça-feira, 28 de janeiro de 2014

À "TIA" ARGENTINA SANTOS

Sou cada vez mais sensível aos sinais...
Sobretudo aqueles que me acorrem inúmeras vezes aos pensamentos, sob a forma de memórias, saudades, sensações de me esquecer de algo importante... e quando realmente me vou esquecendo, eles chegam de outras formas, cada vez mais visíveis, cada vez mais materializados. Como por exemplo, lembrarmo-nos de alguém que queremos ver e, de repente, sob o signo das tais coincidências em que já não acredito, recebermos um texto que alguém se lembrou de partilhar "porque sim" (Pedro Rolo Duarte, já que “segues”, justiça seja feita à tua “iluminação” inocente;-)) e o texto acabar por ser, em grande parte, sobre a pessoa que nos acorre ao pensamento.

Desvendemos o mistério. Sra. Dona Argentina Santos. Tia Argentina, para quem não resiste ao carinho que nos inspira. E que alguém me havia dito recentemente estar na Casa do Artista.

Quem me conhece no Fado sabe que sou o “bicho” menos noctívago, “bairrista”, “casa-de-fados” dependente, assíduo, etc, que deve existir... Mas eu tenho um submundo de afectos que me vai correndo nas veias, imparável, e nunca me sai da pele e quem me cruza, nas raras aparições que faço, julgo poder dizer que assim é. Porque o meu gostar não precisa de alarde, nem anúncios e a memória de ir até à Parreirinha de Alfama e estar cinco minutos sentada ao lado da Tia Argentina continua a significar um mundo de emoções que transcendem as palavras. Diria apenas que a sensação se assemelha à memória que tenho de me sentar ao lado da minha avó, junto ao borralho onde cozinhava todas as refeições da família e todo o Amor que tinha para dar aos seus. A diferença é que a Tia Argentina não tinha um borralho mas sim a caixinha do dinheiro que recebia da venda dos CD. E tinha, por volta da hora a que eu a visitava, muitas, muitas horas de trabalho no corpo e na Alma. Talvez umas 18 horas...
E sempre a mesma vontade de cantar.

Ontem fui até à Casa do Artista visitar esta querida senhora. E guardo para mim os detalhesJ Quem quiser que vá buscar os seus. Mas partilho o mais impressionante dos olhares que tenho tido oportunidade de ver. A mais vibrante energia, mesmo para quem vive uma realidade em tudo contrária à que viveu toda uma vida. No olhar. No relâmpago de vida que nunca se extingue em quem sempre e só fez o que sabia fazer: viver. E que não nos ilude quando parece adormecer, porque de repente, inesperado, fita-nos e arrasa-nos na profundidade que consegue ter, de tão simples e tão puro. E também não se perde naquele cenário de inquestionável “anoitecer”. Nunca…
Lembra-me sempre a viagem que fizemos a Londres, em 1996, ainda com o Carlos Zel e onde fomos ambas convidadas para fazer uma entrevista para a BBC. No quarto de hotel, as jornalistas entrevistavam-nos e eu servia de tradutora da Dona Argentina. E nunca mais me esqueço que, ainda antes de traduzir certas frases, a comoção tomava conta das jornalistas. Mesmo sem perceberem, percebiam. A dimensão humana de um ser simples e generoso na transparência do que contava e sobretudo, como contava. Um dia-a-dia de trabalho árduo, muita entrega, muita dedicação, sessenta e muitos anos a tomar conta de uma casa e de muita gente que dela dependia. Percebiam tudo, afinal, porque era impossível não sentir…

À despedida, não resisti a cumprimentar  a Manuela Maria, outra incrível Senhora que tanto nos tem dado na sua belíssima arte de representar, mas tanto, tanto tem contribuído para a dignificação da Casa do Artistas e para todos os utentes (74!) que dela usufruem. Conversamos com a fluência de quem se reconhece num estado meio insano de gostar da Vida e num código que só conhece quem assim existe. 
Há fracções de segundos onde saímos de nós e apercebemo-nos que estamos realmente a beber de uma Fonte Maior. Vendo-me “de fora”, reconheci-me neste estado de Benção e senti-me grata, GRATA, por aqueles minutos onde pude apreciar a dimensão humana de duas mulheres tão extraordinárias, tão diversas e tão ricas.
Grata por, no meio de tanta desatenção, aceleramento e auto-burrice pontual de que ainda sou acometida algumas vezes, ter ainda assim a capacidade de perceber os tais dos sinais e arranjar tempo para os cumprir. Porque, ao fim e ao cabo, são essas fracções de segundo que me fazem viver.



Tenho também a impressão, de algures nos meio daquele divino momento, ter ouvido o Raul Solnado dizer: “Muito vos agradeço por me fazerem o favor de serem Felizes”.
Assim É.

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