Há poucas horas aceitava um convite do Dr. António Costa e
da CM de Lisboa para as comemorações do 30º aniversário da morte de Ary dos
Santos, com um concerto do Fernando Tordo. Que estranheza esta, ver-nos
celebrar a partida física de um Imortal, talvez porque simplesmente nos faz
falta.
E que falta... Quem aceita, incondicionalmente, a Palavra
Maior a correr nas veias tal qual sangue e já não distingue o que mais o faz
respirar, se o ar, se a Alma, faz falta hoje em dia. Quem aceita morrer porque
tomou uma dose letal de Vida, como às vezes sinto nas palavras de Ary, fará
eternamente falta. Especialmente para quem não o conheceu...
Há poucos anos permiti-me uma das mais bonitas aventuras no
meu caminho artístico. E “permiti-me” é a expressão certa porque apesar do
convite feito pelo Renato Júnior, percebi que eu tinha de deixar entrar esse
universo no meu ou corria o risco de não o alcançar totalmente. Seria mais um
tributo, como, quem sabe, foi para quem não teve oportunidade de presenciar e
viver o “estado Ariano” do grupo, de perto. Seria mais um devaneio, como
tantos que idealizados são sempre de uma imponência a que a realidade não faz
justiça. Seria algo que morreria na praia
mas ninguém ficaria para contar as profundas vagas, que não surgem só na
Nazaré …
Mas eu fiquei.
E desconfio que alguns dos que se cruzarem com este texto
estavam no "areal" e confirmam o que vos conto.
Talvez seja outra das histórias que deixei por contar e com
tanta nuance, acontecimento e detalhe não será de certeza este texto que revela
tudo, mas eu estou nesta fase revivalista e perdoem-me achar que pode ir
aconchegar algum recanto vosso, com beleza, ternura imensa e Amor profundo à
Palavra de Ary e à sua p... de força de nos remexer as entranhas.
Ary em Susana. Ary em Viviane. Ary em Luanda. Ary em
Mafalda... Deixou-nos prenhes.
De “filhos” que nasceram urgentes, sedentos, alucinados sob
o efeito de um espírito indomável e
indizível que o habitava. E que a imitar os duendezinhos irrequietos das
florestas, despontava nos momentos mais inesperados, como uma simples conversa
em que a intenção de nos conhecermos melhor dava lugar à certeza de já nos
sabermos conhecidas, desde sempre. Num espírito semelhante de quem partilhava,
secretamente, vidas onde cada poema parecia talhado do mesmo barro de que
éramos (e somos, de certeza) feitas. Pobre de quem tentou entrevistar este
bando “possuído”... como se Ary viesse fazer-nos cócegas precisamente nesse
momento e nos remetesse à condição de suas “Mosqueteiras” e portanto
portadoras de um mesmo sentido provocador e quase selvagem.
De vitalidade, esperança e convicção, porque além do
privilégio do momento, a genuína vontade de celebrar tamanha Emoção encontrou
morada em quatro mulheres generosas, intensas, disponíveis. E crentes.
E num bando de homens, produtores, músicos, técnicos com
visão suficiente para nos deixarem correr à solta no “jardim” que fizeram com a
sua música. “Um homem bom, um homem são, um homem forte”. Vezes muitos,
inesquecíveis e para sempre adoráveis. E lembrando os parceiros das músicas de Ary,
Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, e tantos outros que partilharam com ele a
Criação.
Prenhes também de risco e loucura e devaneios. Só isso justifica os minutos
insanos que antecediam os inícios dos concertos, levando a nossa Célia ao
desespero e fazendo-nos colocar a voz na ressonância da gargalhada, entre
nervoso miudinho e ganas de arrancar a correr e a gritar “Naaaasci num morro,
de vento e de mar e se não morro aqui vou ficar a cantar...). E lá
arrancávamos. Para terminar em festa e deixar a festa durar até cair, numa
alegria de família que se encontra e acaba de abrir as prenda de Natal. Afinal,
“Natal é quando um homem quiser”...
De estradas que não se cumpriram. De vontades que se engoliram. De fogos que se
extinguiram.
De tudo o que ficou por nascer.
E ainda assim, “Morrida mas nunca morta / triste mas não vencida”.
“Estado Aryano” define-se por uma irresistível vontade de
Ser e atrevo-me a dizer que até hoje nos sabemos abençoados porque houve um
projecto que nos contaminou, até ao osso, desse estado, patologicamente bom.
Quase fazendo uma concessão ao nosso espírito nacional, fatalista e vigente há
demasiado tempo, há algo de amargo na forma como a “Rua da Saudade “ fechou
para “obras”... Mas corrido o tempo, esta “carta de longe” quer-vos hoje dizer
que o sabor que fica é muito doce:-)
Ainda sinto o calor da Susana abraçar as minhas costas num
desconfortável ensaio de som... A célebre escorregadela que não há quem não
tenha nestas lides: “Boa noite Covilhã!!!”. Em Seia... A arrepiante
“Desfolhada”, que cantávamos à capela, na mesa de café do cenário, como se
estivéssemos em casa e por isso pudéssemos deixar correr mágoas, dores e
verdades (e às vezes corriam). E dalí por diante, o concerto era um permanente
driblar de comoção, na esperança de resistirmos ao nó na garganta que se
agigantava e que até ao fim, tinha de sair em honra de Ary. Por Ary. Com Ary.
Acabávamos em perfeita “Tourada” e com vontade de mais,
mais, mais. “Não importa sol ou sombra”, não importa como passou, já nem me
importa como começou. Porque este tempo foi brilhante.
E eu serei eternamente grata porque vivi um pouco de Ary, porque o partilhei com gente linda e assim percebo que a efeméride da sua morte não é mais do que sabe-lo Imortal, como já
disse. Mas sobretudo Infinito, porque em cada morada que encontrar em nós ele
reinventa-se.
E nasce de novo.
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