Sou cada vez mais sensível aos sinais...
Sobretudo aqueles que me acorrem inúmeras vezes aos
pensamentos, sob a forma de memórias, saudades, sensações de me esquecer de
algo importante... e quando realmente me vou esquecendo, eles chegam de outras
formas, cada vez mais visíveis, cada vez mais materializados. Como por exemplo,
lembrarmo-nos de alguém que queremos ver e, de repente, sob o signo das
tais coincidências em que já não acredito, recebermos um texto que alguém se
lembrou de partilhar "porque sim" (Pedro Rolo Duarte, já que “segues”, justiça
seja feita à tua “iluminação” inocente;-)) e o texto acabar por ser, em grande
parte, sobre a pessoa que nos acorre ao pensamento.
Desvendemos o mistério. Sra. Dona Argentina Santos. Tia
Argentina, para quem não resiste ao carinho que nos inspira. E que alguém me
havia dito recentemente estar na Casa do Artista.
Quem me conhece no Fado sabe que sou o “bicho” menos
noctívago, “bairrista”, “casa-de-fados” dependente, assíduo, etc, que deve
existir... Mas eu tenho um submundo de afectos que me vai correndo nas veias,
imparável, e nunca me sai da pele e quem me cruza, nas raras aparições que
faço, julgo poder dizer que assim é. Porque o meu gostar não precisa de alarde,
nem anúncios e a memória de ir até à Parreirinha de Alfama e estar cinco
minutos sentada ao lado da Tia Argentina continua a significar um mundo de
emoções que transcendem as palavras. Diria apenas que a sensação se assemelha à
memória que tenho de me sentar ao lado da minha avó, junto ao borralho onde
cozinhava todas as refeições da família e todo o Amor que tinha para dar aos
seus. A diferença é que a Tia Argentina não tinha um borralho mas sim a
caixinha do dinheiro que recebia da venda dos CD. E tinha, por volta da hora a
que eu a visitava, muitas, muitas horas de trabalho no corpo e na Alma. Talvez
umas 18 horas...
E sempre a mesma vontade de cantar.
Ontem fui até à Casa do Artista visitar esta querida
senhora. E guardo para mim os detalhesJ
Quem quiser que vá buscar os seus. Mas partilho o mais impressionante dos
olhares que tenho tido oportunidade de ver. A mais vibrante energia, mesmo para
quem vive uma realidade em tudo contrária à que viveu toda uma vida. No olhar.
No relâmpago de vida que nunca se extingue em quem sempre e só fez o que sabia
fazer: viver. E que não nos ilude quando parece adormecer, porque de repente,
inesperado, fita-nos e arrasa-nos na profundidade que consegue ter, de tão
simples e tão puro. E também não se perde naquele cenário de inquestionável “anoitecer”. Nunca…
Lembra-me sempre a viagem que fizemos a Londres, em 1996,
ainda com o Carlos Zel e onde fomos ambas convidadas para fazer uma entrevista
para a BBC. No quarto de hotel, as jornalistas entrevistavam-nos e eu servia de
tradutora da Dona Argentina. E nunca mais me esqueço que, ainda antes de
traduzir certas frases, a comoção tomava conta das jornalistas. Mesmo sem
perceberem, percebiam. A dimensão humana de um ser simples e generoso na
transparência do que contava e sobretudo, como contava. Um dia-a-dia de trabalho árduo, muita entrega, muita dedicação, sessenta e muitos anos a tomar conta de uma casa e de muita gente que dela dependia. Percebiam tudo,
afinal, porque era impossível não sentir…
À despedida, não resisti a cumprimentar a Manuela Maria, outra incrível Senhora que
tanto nos tem dado na sua belíssima arte de representar, mas tanto, tanto tem contribuído
para a dignificação da Casa do Artistas e para todos os utentes (74!) que dela
usufruem. Conversamos com a fluência de quem se reconhece num estado meio insano de gostar da Vida e num código que só conhece quem assim existe.
Há fracções de segundos onde saímos de nós e apercebemo-nos que
estamos realmente a beber de uma Fonte Maior. Vendo-me “de fora”, reconheci-me neste
estado de Benção e senti-me grata, GRATA, por aqueles minutos onde pude
apreciar a dimensão humana de duas mulheres tão extraordinárias, tão diversas e
tão ricas.
Grata por, no meio de tanta desatenção, aceleramento e
auto-burrice pontual de que ainda sou acometida algumas vezes, ter ainda assim a capacidade de perceber os tais dos sinais e arranjar
tempo para os cumprir. Porque, ao fim e ao cabo, são essas fracções de segundo
que me fazem viver.
Tenho também a impressão, de algures nos meio daquele
divino momento, ter ouvido o Raul Solnado dizer: “Muito vos agradeço por me fazerem
o favor de serem Felizes”.
Assim É.