Translate

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O MILAGRE


Acredito piamente no efeito alucinante de uma cascata de ideias... Lembro-me em particular de uma querida colega de veterinária que esperava pacientemente que eu regressasse à realidade para perceber que a havia perdido nos meandros das cinco histórias que tinha conseguido envolver na partilha de uma só.

É o caso, neste momento mas se alguém se perder que volte sempre, sempre ao vídeo, que será o cerne deste post. E, em ultima análise, a prova de que existem "portos de abrigo", lugares sublimes como o universo que estas vozes despertam em mim, onde a única coisa que conta é respirar e deixar tudo parar. Menos a Alma...

Esta história faz-me regressar a uma das experiências mais incríveis que vivi neste mundo artístico e, que, ao levar a extremos o sigilo profissional e o enredar da vida, acabei não partilhando. E seria uma pena...
Recebi há alguns anos um convite do Cirque do Solei para participar no casting de um concerto em criação, na altura, onde a cantora seria a figura protagonista, representando uma figura em tudo próxima dos arquétipos da Deusa, Mãe, Mulher, Guerreira. Como devem imaginar, esta história não trata de “Como deixei o Fado e me tornei artista de um dos maiores espetáculos de sempre da Humanidade”, ou não estaria neste momento a escrever este blog:-)
A parte simples é claramente revelar que por diversos motivos e porque tudo é como tem de ser, tal não aconteceu. Mas sempre que vir “Amaluna” (assim se chama esta produção, já em estrada) vou poder fantasiar com a outra vida que teria nascido para mim.

A parte Imensa do que vos posso contar da experiência envolve universos que acredito qualquer pessoa (em especial um artista) deveria ter oportunidade de conhecer. Desde a forma profissional e assertiva com que os contactos são feitos, à fluidez do discursos, à rapidez das decisões à absoluta sensibilidade para o que há de Verdade num artista, são detalhes que nos ensinam uma dinâmica que, infelizmente, ainda nos é algo longínqua... A verdade é que acabei selecionada, com mais duas artistas internacionais, para ir ao Canadá, fazer o casting decisivo. No mundo das “divas do fado”, como tantas vezes gostam de chamar aos ciclos de concertos por esse mundo fora, não deixa de ser delicioso imaginar uma “diva circense”... e como sei que não fui a única contactada ainda hoje tenho um prazer pessoal em imaginar algumas pessoas a receberem este convite:-)

A primeira experiência transformadora são as residências de artistas. Onde, diga-se, teria a liberdade de levar família (filhos, mãe, marido...), recebendo para tal o apoio integral da “família” Cirque do Solei, que iria desde escolas a seguros de saúde e despesas de manutenção, a laços que percebi serem de “Outro Mundo”, como o são as pessoas que aí se encontram. Mas falemos das residências. A entrada no mundo romântico que se adivinha esclarece-se em 25m2. Onde temos a sala, o quarto, a “cozinet” (que dizer? Porque não é kitchnet, mas cozinha também não...), o roupeiro, e a porta do wc, que em vista da área, é gigante e ocupa tanto espaço...
E enquanto o meu coração romântico e aventureiro se apertava em desconforto (sabe-me bem a casa que conquistei, ainda que agora a tenha que imaginar por fatias...), a alma agigantava-se em vergonha. E transformação. Talvez eu não fosse capaz de abdicar da banheira da suite e de descansar a monotonia por entre um mínimo de 3 quartos, mas aquele era o Palácio dos Seres Sublimes que admirava e que descobri em Quidam, Corteo, Alegria e mais um par de espetáculos que vi.

E então percebi que até à data tinha vivido no Oásis da Arte. Onde se chega espontaneamente por causa de uma praxe académica, onde se começa uma carreira no palco de outro grande artista, onde se fazem duetos por sermos símbolos de uma geração. Mas aqueles quartos, onde descansam os fazedores da Magia, albergam gente simples que depois de horas de práctica, descansam dedos partidos, músculos mordidos, fracassos limitados a um mínimo restritíssimo e refazem a concentração no que importa, no que conta, nos que os faz respirar: o momento de serem o culminar de anos de trabalho árduo, de dedicação absoluta, de escolhas cruéis, de romper com raízes e laços. Dia, após dia, após dia, após dia.

Mais propriamente dito, dia após dia, durante seis semanas, tarde e noite. Parando depois duas semanas. E depois voltando, dia após dia, durante seis semanas, tarde e noite. A residência era pequena?! Pois a agenda era graaaaaaaande!!!!!! E a pergunta “se consigo?!” ainda maior. E a solidão em Montreal, mesmo para uma “diva” de espírito forte, pesada...

Antes do casting, algumas palavras para todo o edifício, a cantina, a fábrica de cenários, tecido e adereços, as fábricas de ideias (“laboratórios” de tudo: acrobacias, palhaçadas, make-up, canto, TUDO!), os imensos escritórios e uma peça inesquecível: uma pirâmide de vidro para recolher água das chuvas e ser integrada em todo o circuito, usadas das mais diversas formas, num hino à sustentabilidade, mas sem a novidade que para nós ainda representa separar lixo e reciclar. Antigo, muito antigo, como se a harmonia com as Fontes e os Elementos fosse a pré-primária de uma escola especial por onde se filtra cada ser que ainda vem intoxicado de centros comerciais, fast-food ou qualquer outro tipo manipulador de consciência.

E finalmente o casting! Regressei a um estado ridiculamente tranquilo, que tinha quando era muito jovem e não sabia bem ao que ia, num exame, numa prova, e por isso mesmo achava a angustia da antecipação um perfeito desperdício. E essa tranquilidade permitiu-me saborear cada momento. Cantei os temas pedidos para o espetáculos, os meus temas, toquei guitarra (!) e cantei, algo que há anos não tinha coragem de fazer e finalmente pedem-me que represente, que me expresse, perguntando-me se tinha alguma formação em teatro. Além das “peças da catequese e da escola, não...”. Nem falei das peças que fazia com os primos de Ponte-de-Lima, pois percebi que há limites para o Encantamento que se viveu naquela sala. Percebi também que me sabiam “estrangeira” àquele mundo, de humildes e brilhantes artistas e pirâmides de água na genética. Mas nunca, em tantos anos de estrada e encontros e descobertas, vi olhares tão brilhantes, tão inspiradores, tão genuinamente interessados e tão claramente verdadeiros. Não era dali, mas era de um mundo muito meu, do meu próprio Circo e, num lugar conhecido pela formação extraordinária aos seus músicos, cantores e artistas em geral, como é o Canadá, sei que ficaram a pensar que lugar seria este, Portugal, onde se ensina a ter Alma...

O vídeo, do principio?! Perguntam vocês...
Tal como nas histórias que conto, também os meus momentos são feitos de infinitos momentos cruzados e enquanto tudo o que vos contei acontecia, outros mundos meus aconteciam também. Quem sabe será neste blog que venho ao fim de alguns anos revelar o que tanta revista e entrevista vem tentando saber:-) (não me parece). Mas quando vejo outras pessoas partilharem coisas tão tremendas, na simplicidade e na generosidade de partilhar histórias tão pessoais com o simples propósito de ajudar a quem quer que possam servir, percebo que as fronteiras da minha privacidade não precisam de tantos muros. E que é possível mantê-la, no espírito de preservação de quem comigo convive, mas partilhar o suficiente para que faça sentido tudo o que faço, canto, conto, revelo. E para que se perceba que tudo é igual ao comum dos mortais

Tudo para explicar que na residência que foi minha por 5 dias, consegui experimentar algo do que leva os artistas do Cirque a saberem-se em “Casa”. Durante a viagem, e talvez pela viagem, assisti à “derrocada” (mais uma) da relação que vivia, na altura, e a cada dia a residência parecia menor. E a solidão em Montreal esmagadoramente maior... até que percebi que era a mesma que muitas vezes vivia em Portugal. Em Lisboa. E afinal, até em casa, na suite, na banheira ou nos 3 quartos, não importa.
E percebi também que, como cá, todas as derrocadas têm encostas por onde trepar... palmilhei Montreal horas a fio até me cruzar com este filme, “Les Choristes”. E em poucos minutos de mergulhar no meu Mundo, que se revela sempre que descubro algo que me inspira, arrepia, toca, encanta, emociona, acrescenta, como este filme, descobri que já estava a regressar a “Casa”. Dentro. E que tinha estado sempre comigo.

Sair do conforto a que estamos habituados, da realidade que nos habituamos a viver e carpir, por necessidade ou puro vício, do caminho que vamos construindo e acaba seja porque motivo for, pode trazer uma derrocada.
Mas, abençoadas subidas.
Nelas, vêm-se acontecer milagres.
Porque não há Milagre maior do que regressar a Casa… E saber que estamos sempre lá.




1 comentário: