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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

VOCÊS

A história dos afectos tem, nalguns casos, um rol de cronologias e acontecimentos que se desenrolam em páginas ao estilo "lista telefónica" e parecem validar a teoria que diz só serem reais os sentimentos que têm por fundamento anos e anos de convivência e conhecimento.

Noutros casos, são algo mais parecido com cadernos de anotações de onde arrancamos folhas em modo aleatório, umas por necessidade, outras para emprestar, outras para submeter ao compassivo triturador de memórias e que ao folhearmos, mais tarde, percebemos terem "buracos" e falhas, mas com sorte, terão ainda cosidas as páginas com as anotações essenciais.

Há ainda outros casos que chamo de afecto permanente e contínuo. À distância... Que é aquele caso familiar apenas a quem conhece um estado único de saber continuar do ponto em que se ficou. Imaginem alguém que adoram. E reencontram de dois em dois anos. De cinco em sete. Ao fim de dez anos... E o tempo parece nunca ter passado, congelou mesmo, e descobrimos que a conversa continua da ultima frase em que nos despedimos porque não há tempo a perder com ausências que no fundo nunca aconteceram, porque nos afectos verdadeiros, os laços insistem em não se desfazer...

Uns dos que mais gosto, são os “afectos à primeira vista”, que como o amor que usa do mesmo nome para significar arrebatamento e quase sempre um estado incondicional, significam um tipo de impulso e instinto que quase sempre traduzem a nossa mais íntima consciência, que sabe o que é verdadeiro...

Mas hoje senti necessidade de partilhar uma sensação provocada por um tipo de afecto muito particular, único mesmo, que cresceu em mim ao longo destes anos e neste percurso particular enquanto artista, fadista, comunicadora, autora. O afecto, o carinho profundo, um sentimento quase tão invisível quanto palpável por um universo que, afinal, é na sua maioria desconhecido para mim: o Público.

Numa sala onde inevitavelmente sabemos que estão rostos e corações familiares, amigos, companheiros de viagem, esse sentimento revela-se óbvio, por vezes intimidante e desafiador, mas sempre familiar e querido. É a vida em comum, cruzada, partilhada que se celebra e transborda, claro.

Mas ao dar-me conta que, na sua maioria, quem me ouve, quem fez da visita a um palco “meu” uma escolha no seu dia, quem aplaude, quem fecha os olhos para “beber” uma emoção mais profunda, quem se levanta no fim, em contentamento e gratidão me é, e provavelmente será pelo sempre, desconhecido, não contenho um arrepio. E não estranho o afecto, profundo, intenso, grato, que sendo diferente de todos os outros afectos que distingui não é, de modo algum menor e será provavelmente a razão maior da minha escolha de vida. Do meu eixo de vida, afinal, bem vistas as coisas.

Poderia dizer que o que me move é o Amor à Arte, à Música, ao Fado estilo e ao Fado Vida. Mas lembro-me de quando a Música era o meu mundo secreto e de quanto segredos contei de mim para mim em cada Fado que descobri e nunca, nunca me senti menos feliz nesses instantes só meus. Bastava-me essa circunvalação interior.

Até ser descoberta pelas Pessoas. E até descobrir que foram essas Pessoas que acrescentaram Plenitude ao meu mundo. Sob todas as formas, desde a mais profunda admiração, às mais sérias contestações, à melhor das ajudas, ao pior dos silêncios, ao carinho imenso, que anos volvidos percebo inspirar e, continua a figurar no topo da minha lista de felicidades. Não há nada melhor... Vejo tudo e tanto passar. Porque tudo passa. Mas só o Amor acompanha tudo...

Provavelmente por isso e apesar de tanta resistência, desde sempre, o meu mundo “feliz” pessoal é insistentemente posto “no Mundo”. De todas as vezes que pensei desistir, inesperadamente os acontecimentos devolveram-me, num turbilhão, ao Mundo. De todas as vezes que egoisticamente quis regressar à comodidade do meu lugar “feliz” fui chamada, sem contemplações, ao Mundo. Sempre que julguei esgotada a capacidade de resistência recebi inequívocos sinais de que “não pode escolher quem nasceu da força das marés”. E, em todos os momentos, em todas as duvidas, em tantas e diferentes fases percebo que o alimento da minha Arte são as Pessoas. O alimento e o propósito.

Vocês.
Eu.
Nós.

Eu tenho sido barro, que a vida vem moldando rumo a algo. A música tem sido um veículo abençoado para cumprir esse propósito. O fado tem sido a linguagem. Os músicos, a família. Os compositores, poetas, agentes, produtores, promotores, assistentes os alicerces e os agentes da mudança.

Mas o Público, quem ouve, quem recebe, quem me precisa, quem vem, quem dá, quem significa os meus dias, é, na verdade, a minha seiva. A razão. O motivo.

Vocês.


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

AOS QUE FICAM

Hoje sinto-me um bocadinho cansada...
E reconhecendo-me enquanto unidade hospitaleira de inúmeras formas de “bichos carpinteiros”, percebo ainda assim que não é do frenesim habitual, nem do ritmo a que há anos me habituei por me ser simplesmente natural, mesmo quando aparentemente estou parada. Existem verdadeiros “ginásios de fitness”, alojados nos meus neurónios e nas minhas emoções e a menos que decidam fazer greve sem comunicação antecipada ou que me deixe contagiar por uma onda súbita de pura contemplação, assumo que gosto de os saber em plena e saudável actividade.

Mas hoje sinto aquele cansaço que denuncia uma quebra que se quer ignorar, mas que exige, com autoridade, o seu lugar, junto de todas as outras emoções garridas que gostam de se pavonear no meu pódio. Já o conheço, parceiro de longa data, e por isso já sei também que não é “figura” em busca de visibilidade ou fama prolongada. Aprendemos a conviver e conheço-lhe demais o avesso do direito para a ele me render ou sequer me deixar embalar na falsa sugestão de vazio que traz consigo. 
É tão impopular falar dele mas os meus “bichos carpinteiros” andam apontados para os muros que se criam à volta de tabus e assuntos impopulares que tendem a roer-nos da forma mais cruel possível. No silêncio.

Este é um cansaço que é quebranto. É uma quebra que é saudade. Mas é um vazio que passa, se deixarmos.
Para uns, mais rápido que outros. Para outros, mais suave que uns. Para todos, um inevitável lugar a cruzar. 
O luto. A perda de algo de valioso significado.
O luto tem esse dom de, por instantes, nos cansar. E se não o cuidarmos, de nos empestar mesmo.

E é por isso que prefiro olhá-lo nos olhos, na sua forma informe e de múltipla expressão para cada ser e dizer-lhe que o vejo. 
Que sei que existe.
Que escusa, por isso, de se agigantar com medo de passar despercebido.
Que escusa de se alojar nas dobras das minhas sombras para fazer “cu-cu” quando me for menos conveniente.
Que escusa de se considerar o maior e mais inevitável desfecho, porque do rumo da minha Alma sei Eu. EU. Eu.
Que escusa de me “condecorar” com as partidas que me calharam porque sempre que as tirei da gaveta escura onde gosta de as guardar fui abençoada com as certezas sublimes da Vida que continua para lá da matéria. Uma brisa, uma sensação, uma presença a preencher o vazio.

Eu vejo-o. Mas já não lhe dou confiança.
Permito a sua manifestação, enquanto for de cura.
Reconheço-o, respeito-o, mas não me rendo.
E não lhe facilito reféns.

Talvez seja por isso que quando abraço alguém que foi tocado pela sua “visita” perceba uma sensação de alívio, que pareço despertar. Como se transmitisse que esse é um caminho que se pode cruzar e sair vivo, do outro lado do labirinto. Transformado, seguramente, mas vivo, presente e capaz de continuar o compromisso diário de existir.

Será este, seguramente, o maior aliado para estes dias do cansaço: compromisso de viver.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

SER-SE

Enquanto entro neste novo mundo da escrita e deste blog, surgem-me por diversas vezes sinais curiosos de uma mudança em alguns dos meus “funcionamentos”, algo que veio acontecendo de forma subtil e, de repente, como se explodisse por impossibilidade de contenção, tomou conta da minha expressão, de forma natural, pacífica e tranquila.

Acho que se trata de um estado que há alguns anos procurava reencontrar, que não sendo de impulsividade (a qual reconheço ter, de sobra...) é antes, neste caso particular, de naturalidade. A tal “coisa” de se ser o que se sente, o que apetece, o que acontece, o que sai. O que nos revela em verdade e transparência. No que é de revelar. Nos aproxima de quem se revê nessa realidade. E quem sabe contamina uns poucos a um exercício parecido.

Julgo que se chama transparência. E nesse estado, que resulta provavelmente de se diminuir uma percepção exacerbada que vamos criando sobre nós próprios, fruto do nosso ego e dos egos ao nosso redor, acabo percebendo que é a escrita que me domina e não os acontecimentos, ainda que pareça que ela acontece para vos contar coisas... sim, é para isso, também. Mas, na verdade, é como se tivesse sido quebrado o filtro do julgamento, da restrição, da avaliação pessoal e alheia, e, finalmente, o que fica registado tem um propósito que nem eu descubro qual, mas precisa sair. E ser partilhado, porque mais do que precisar de sair, precisa chegar.

Claro que não chegará a todos, porque essa é outra tranquilidade, finalmente absorvida. As massas têm um propósito ilusório de grandiosidade que não me convence nem ilude, já. A não ser as “al dente” com o melhor “aglio e olio peperoncino”... E parmesão, claro;-)
Não será alheio a este filtrar, o número de palavras  e letras que percebo no fim de cada texto, um teste de resistência a uma maioria que nem a este parágrafo chega. Não julguem que se trata de seleção, segregação ou algo do género. Nem me reconheço esse direito. É apenas a consciência que o caminho para se aprofundar seja o que for, se for muito rápido, muito ligeiro, muito geral, é certo que será, com grande certeza, efémero, também.

Mas voltando à transparência...
Muitos advogam a importância de se ficcionar uma figura publica, que não só proteja a pessoa que lhe dá forma, como seduza inequivocamente um público sedento de quem lhes reproduza os sonhos e fantasias pessoas.
Outros defendem que, sem alimentar os fãs com os mais ínfimos detalhes da vida real do alvo da sua admiração, o esquecimento será o mais provável dos desfechos.
E outros ainda, sem estratégias ou manipulações, têm simplesmente um curso de acontecimentos onde nada disso importa, porque o nível do seu trabalho e a particularidade do seu público não se desviam do foco da sua Arte. E nem uns revelam muito, nem os outros precisam de mais do que recebem.

Na verdade descubro que estou fora de todas estas categorias, porque apesar das semelhanças com a última, se não houvesse quem lesse o que escrevo e pontualmente partilho, também este texto não tinha qualquer sentido:-)

E finalmente, percebo o porquê deste regresso à transparência e ao “ser-me”. Depois de entrar acidentalmente no universo da Música, de me contagiar em cada poro com o Fado, de me comprometer de forma incondicional com os seus meandros, de me perceber oficialmente Artista, profissional, dedicada e colectada nas Finanças enquanto trabalhador independente e empresária na área das artes, percebo que por maior respeito que tenha à minha Profissão, tenho infinitamente mais à minha Pessoa.

E é a Pessoa que sou, por dentro da Artista, da Amiga, da Mulher, da Filha, da Irmã, da Tia, que me ocorre partilhar. Não há milímetro da história de quem me rodeia que não tenha a autorização dos identificados, para estar. Como não há milímetro que escolha partilhar que me vulnerabilize, por mais indistinta que possa parecer a fronteira do profundo e do Muito profundo. A minha vulnerabilidade, os meus receios, os meus medos, são cada vez mais as minhas forças. Porque como sou eu, e lá vou aprendendo a “gostar-me”, não é que lhes tenho certa afeição, agora que as reconheço?

Aos indiferentes não fará nem mal, nem bem, nem diferença nenhuma.
Aos mal intencionados, saberão mais que nunca a beleza da Boa Intenção, que será o único retorno que terão.
Aos duvidosos trará a percepção de quão criativa, curiosa e “desinstaladora” a dúvida pode ser. A maior parte da minha visão tem raíz em dúvidas profundas com que me fui deparando toda a minha vida. Até descobrir que também não eram as certezas que me faziam falta... enquanto fui da dúvida à certeza perdi um precioso tempo de convivência com a realidade. Simples.

E aos que descobrem algum sentido e sintonia no que vivo e partilho, poderá significar uma infinidade de coisas tão importantes quanto sabermos que não estamos sós. Poderá ter uma pequena chave que faça a diferença em algum momento. Uma dica que sirva de bóia para algum naufrágio. Poderá ser qualquer coisa de útil. Oxalá.
Mas ser-me em absoluto silêncio, privacidade, segurança e recato, pareceu-me , finalmente, um desperdício de uma Vida Boa…


Façam, por isso, bom proveito de mim.

O REFÚGIO DE TODOS NÓS

Quem disser que nunca sentiu falta de um refúgio, corre sérios riscos de se sujeitar à minha manifesta dúvida. Mesmo aqueles que me dizem não saberem viver sem animação à volta, sem urbanidade, sem os vícios caseiros que vamos criando nos nossos ninhos, desde a prateleira com que tendemos a chocar apesar da convivência diária, ou os cadeirões deformados pelas horas de poiso fiel de fim do dia…

Duvido e atrevo-me a questionar, porque salvo raras excepções de seres iluminados que vejo viajarem para o seu refúgio interior com o toque de uma varinha de condão invisível, quase todos os outros seres, comuns mortais como eu, acabam a suspirar por um lugar de "fuga", que lhes traga, no entanto, a familiaridade de um mundo próximo, onde se sintam aconchegados. 
Acolhidos. 
Reconhecidos. 
Um lugar que precisamos saber que existe, para quebrar a rotina e sobretudo para aqueles momentos em que  o nosso ninho habitual está tão impregnado da nossa vida diária, que esta se colou à pele, aos cabelos, circula pelo ar e pelas veias e não há espirro, banho, limpeza que tire. Às vezes, a vida é muito “cola”...

E é bom saber que existe um lugar assim.
Eu sei.

Há muitos anos que viajo para lá. Em momentos diversos e em estados diversos de “vida-cola”. Uns assemelham-se a um “post-it” ligeiro colado à camisa, que qualquer rabanada de vento arranca, outros com aquelas “colas” peçonhentas que nem bom diluente dá conta.
Mas assim que chego a este lugar, percebo-me numa espécie de mudança de pele (tipo cobrinhaJ), que deixo à porta porque simplesmente é ali que me reciclo e limpo qualquer aderência mais teimosa do dia-a-dia.

A “Mãe” deste lugar, é absolutamente digna desse nome, porque ao fim de anos de luta, entrega, luta, desafios, luta, esperança e finalmente luta, luta, luta assisto à sua permanência num lugar porque a sua missão Mater é infinita. Perante este cenário de resistência a tempos adversos usa como auxiliares bélicos (sim, é uma verdadeira batalha, aquilo a que está sujeita!) o maior dos sorrisos e uma boa disposição inquebrável.

Poderiam pensar que o refúgio de que vos falo é o Refúgio da Vila, lugar mágico em Portel. Mas o refúgio de que vos falo é mesmo o do sorriso da Sofia Vieira, a Alma que adora acolher, receber, cuidar, mimar e que aceita uma estrutura gigante que quase a engole mas não a derruba. Nem nós o permitimos. Esta Mãe é à prova de tsunami… E o refúgio da Vila é maravilhoso, mas só porque é a casa que ela prepara para nós, com qualidade, elegância e muito Amor.

Este fim-de-semana serviu de “viragem” para um período difícil em que o sonho de manter este lugar pareceu ameaçado. Celebrou-se a abertura de um tempo de confiança reforçada, de entrega afinada e de incondicional compromisso. A festa que apreciei este sábado, faz-me acreditar que voltámos aos tempos de um movimento colectivo de apoio face ás adversidades e sobretudo Pro-pessoas-inspiradoramente-carismáticas-respeitadas-e-reconhecidamente-generosas. E queridas, como é a Sofia.

Convidou um grupo para este fim-de-semana com o fim de promover o espaço e reacender a chama, mas graças ao envolvimento de diversos produtores da área, a festa tomou dimensões de repasto abundante de produtos da maior qualidade (que país divino temos!!!) e dessa Alquimia, das pessoas que se juntam em nome de algo ou alguém em que acreditam, a noite cresceu de Feliz a Mágica, de Mágica  a Plena e de Plena a um firmamento repleto de Estrelas que auspiciam um futuro lindo para este refúgio e sobretudo para quem se deixar tentar a ir conhecê-lo. O “firmamento estrelado” é mesmo literal pois havia um telescópio, no fim da noite para quem se quisesse deslumbrar com o céu do AlentejoJ

Como o céu de ontem, todos os presentes se abriram, ao longo destes dias, a desfrutar pessoalmente da Magia da nossa hospitalidade portuguesa. Eu sou suspeita, claro, porque o colo dos nossos amigos é sempre o melhor do mundo...
Mas entre as aulas de culinária divertidíssimas, os passeios de barco no Alqueva, a visita ao Bolota, museu temático de Portel, a ronha de um Domingo de manhã em frente à lareira, o som das crianças com espaço para correr e gritar sem se temer nenhum lunático que acelera nas curvas, nos momentos em que espreitei o Castelo de Portel, lá do alto, parecia-me ver os nossos régios antepassados cobiçarem a feliz e acolhedora tranquilidade deste refúgio e do abundante mundo que por ali vêm fervilhar...

A mim viram-me, seguramente muito Feliz...

Obrigada, Sofia Vieira, “mãe” do refúgio de todos nós.

Não tarda batem-te à porta novos amigos...