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sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

ARY - CARTA DE LONGE AOS ARIANOS

Há poucas horas aceitava um convite do Dr. António Costa e da CM de Lisboa para as comemorações do 30º aniversário da morte de Ary dos Santos, com um concerto do Fernando Tordo. Que estranheza esta, ver-nos celebrar a partida física de um Imortal, talvez porque simplesmente nos faz falta.

E que falta... Quem aceita, incondicionalmente, a Palavra Maior a correr nas veias tal qual sangue e já não distingue o que mais o faz respirar, se o ar, se a Alma, faz falta hoje em dia. Quem aceita morrer porque tomou uma dose letal de Vida, como às vezes sinto nas palavras de Ary, fará eternamente falta. Especialmente para quem não o conheceu...

Há poucos anos permiti-me uma das mais bonitas aventuras no meu caminho artístico. E “permiti-me” é a expressão certa porque apesar do convite feito pelo Renato Júnior, percebi que eu tinha de deixar entrar esse universo no meu ou corria o risco de não o alcançar totalmente. Seria mais um tributo, como, quem sabe, foi para quem não teve oportunidade de presenciar e viver o “estado Ariano” do grupo, de perto. Seria mais um devaneio, como tantos que idealizados são sempre de uma imponência a que a realidade não faz justiça.  Seria algo que morreria na praia mas ninguém ficaria para contar as profundas vagas, que não surgem só na Nazaré

Mas eu fiquei.
E desconfio que alguns dos que se cruzarem com este texto estavam no "areal" e confirmam o que vos conto.

Talvez seja outra das histórias que deixei por contar e com tanta nuance, acontecimento e detalhe não será de certeza este texto que revela tudo, mas eu estou nesta fase revivalista e perdoem-me achar que pode ir aconchegar algum recanto vosso, com beleza, ternura imensa e Amor profundo à Palavra de Ary e à sua p... de força de nos remexer as entranhas.

Ary em Susana. Ary em Viviane. Ary em Luanda. Ary em Mafalda... Deixou-nos prenhes.

De “filhos” que nasceram urgentes, sedentos, alucinados sob o efeito de um espírito indomável e  indizível que o habitava. E que a imitar os duendezinhos irrequietos das florestas, despontava nos momentos mais inesperados, como uma simples conversa em que a intenção de nos conhecermos melhor dava lugar à certeza de já nos sabermos conhecidas, desde sempre. Num espírito semelhante de quem partilhava, secretamente, vidas onde cada poema parecia talhado do mesmo barro de que éramos (e somos, de certeza) feitas. Pobre de quem tentou entrevistar este bando “possuído”... como se Ary viesse fazer-nos cócegas precisamente nesse momento e nos remetesse à condição de suas “Mosqueteiras” e portanto portadoras de um mesmo sentido provocador e quase selvagem.

De vitalidade, esperança e convicção, porque além do privilégio do momento, a genuína vontade de celebrar tamanha Emoção encontrou morada em quatro mulheres generosas, intensas, disponíveis. E crentes.
E num bando de homens, produtores, músicos, técnicos com visão suficiente para nos deixarem correr à solta no “jardim” que fizeram com a sua música. “Um homem bom, um homem são, um homem forte”. Vezes muitos, inesquecíveis e para sempre adoráveis.  E lembrando os parceiros das músicas de Ary, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, e tantos outros que partilharam com ele a Criação.

Prenhes também de risco e loucura e devaneios. Só isso justifica os minutos insanos que antecediam os inícios dos concertos, levando a nossa Célia ao desespero e fazendo-nos colocar a voz na ressonância da gargalhada, entre nervoso miudinho e ganas de arrancar a correr e a gritar “Naaaasci num morro, de vento e de mar e se não morro aqui vou ficar a cantar...). E lá arrancávamos. Para terminar em festa e deixar a festa durar até cair, numa alegria de família que se encontra e acaba de abrir as prenda de Natal. Afinal, “Natal é quando um homem quiser”...

De estradas que não se cumpriram. De vontades que se engoliram. De fogos que se extinguiram. 
De tudo o que ficou por nascer.
E ainda assim, “Morrida mas nunca morta / triste mas não vencida”. 

“Estado Aryano” define-se por uma irresistível vontade de Ser e atrevo-me a dizer que até hoje nos sabemos abençoados porque houve um projecto que nos contaminou, até ao osso, desse estado, patologicamente bom. Quase fazendo uma concessão ao nosso espírito nacional, fatalista e vigente há demasiado tempo, há algo de amargo na forma como a “Rua da Saudade “ fechou para “obras”... Mas corrido o tempo, esta “carta de longe” quer-vos hoje dizer que o sabor que fica é muito doce:-)

Ainda sinto o calor da Susana abraçar as minhas costas num desconfortável ensaio de som... A célebre escorregadela que não há quem não tenha nestas lides: “Boa noite Covilhã!!!”. Em Seia... A arrepiante “Desfolhada”, que cantávamos à capela, na mesa de café do cenário, como se estivéssemos em casa e por isso pudéssemos deixar correr mágoas, dores e verdades (e às vezes corriam). E dalí por diante, o concerto era um permanente driblar de comoção, na esperança de resistirmos ao nó na garganta que se agigantava e que até ao fim, tinha de sair em honra de Ary. Por Ary. Com Ary.

Acabávamos em perfeita “Tourada” e com vontade de mais, mais, mais. “Não importa sol ou sombra”, não importa como passou, já nem me importa como começou. Porque este tempo foi brilhante.
E eu serei eternamente grata porque vivi um pouco de Ary, porque o partilhei com gente linda e assim percebo que a efeméride da sua morte não é mais do que sabe-lo Imortal, como já disse. Mas sobretudo Infinito, porque em cada morada que encontrar em nós ele reinventa-se.

E nasce de novo.

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