A história dos afectos tem,
nalguns casos, um rol de cronologias e acontecimentos que se desenrolam em
páginas ao estilo "lista telefónica" e parecem validar a teoria que
diz só serem reais os sentimentos que têm por fundamento anos e anos de
convivência e conhecimento.
Noutros casos, são algo mais
parecido com cadernos de anotações de onde arrancamos folhas em modo aleatório,
umas por necessidade, outras para emprestar, outras para submeter ao compassivo
triturador de memórias e que ao folhearmos, mais tarde, percebemos terem
"buracos" e falhas, mas com sorte, terão ainda cosidas as páginas com
as anotações essenciais.
Há ainda outros
casos que chamo de afecto permanente e contínuo. À distância... Que é aquele
caso familiar apenas a quem conhece um estado único de saber continuar do ponto
em que se ficou. Imaginem alguém que adoram. E reencontram de dois em dois
anos. De cinco em sete. Ao fim de dez anos... E o tempo parece nunca ter
passado, congelou mesmo, e descobrimos que a conversa continua da ultima frase
em que nos despedimos porque não há tempo a perder com ausências que no fundo
nunca aconteceram, porque nos afectos verdadeiros, os laços insistem em não se
desfazer...
Uns dos que mais
gosto, são os “afectos à primeira vista”, que como o amor que usa do mesmo nome
para significar arrebatamento e quase sempre um estado incondicional,
significam um tipo de impulso e instinto que quase sempre traduzem a nossa mais íntima consciência, que sabe o que é verdadeiro...
Mas hoje senti
necessidade de partilhar uma sensação provocada por um tipo de afecto muito
particular, único mesmo, que cresceu em mim ao longo destes anos e neste
percurso particular enquanto artista, fadista, comunicadora, autora. O afecto,
o carinho profundo, um sentimento quase tão invisível quanto palpável por um
universo que, afinal, é na sua maioria desconhecido para mim: o Público.
Numa sala onde
inevitavelmente sabemos que estão rostos e corações familiares, amigos,
companheiros de viagem, esse sentimento revela-se óbvio, por vezes intimidante
e desafiador, mas sempre familiar e querido. É a vida em comum, cruzada,
partilhada que se celebra e transborda, claro.
Mas ao dar-me
conta que, na sua maioria, quem me ouve, quem fez da visita a um palco “meu”
uma escolha no seu dia, quem aplaude, quem fecha os olhos para “beber” uma
emoção mais profunda, quem se levanta no fim, em contentamento e gratidão me é,
e provavelmente será pelo sempre, desconhecido, não contenho um arrepio. E não
estranho o afecto, profundo, intenso, grato, que sendo diferente de todos os
outros afectos que distingui não é, de modo algum menor e será provavelmente a
razão maior da minha escolha de vida. Do meu eixo de vida, afinal, bem vistas
as coisas.
Poderia dizer que
o que me move é o Amor à Arte, à Música, ao Fado estilo e ao Fado Vida. Mas
lembro-me de quando a Música era o meu mundo secreto e de quanto segredos
contei de mim para mim em cada Fado que descobri e nunca, nunca me senti menos
feliz nesses instantes só meus. Bastava-me essa circunvalação interior.
Até ser
descoberta pelas Pessoas. E até descobrir que foram essas Pessoas que
acrescentaram Plenitude ao meu mundo. Sob todas as formas, desde a mais profunda
admiração, às mais sérias contestações, à melhor das ajudas, ao pior dos
silêncios, ao carinho imenso, que anos volvidos percebo inspirar e, continua a
figurar no topo da minha lista de felicidades. Não há nada melhor... Vejo tudo
e tanto passar. Porque tudo passa. Mas só o Amor acompanha tudo...
Provavelmente por
isso e apesar de tanta resistência, desde sempre, o meu mundo “feliz” pessoal é
insistentemente posto “no Mundo”. De todas as vezes que pensei desistir,
inesperadamente os acontecimentos devolveram-me, num turbilhão, ao Mundo. De
todas as vezes que egoisticamente quis regressar à comodidade do meu lugar
“feliz” fui chamada, sem contemplações, ao Mundo. Sempre que julguei esgotada a
capacidade de resistência recebi inequívocos sinais de que “não pode escolher
quem nasceu da força das marés”. E, em todos os momentos, em todas as duvidas,
em tantas e diferentes fases percebo que o alimento da minha Arte são as
Pessoas. O alimento e o propósito.
Vocês.
Eu.
Nós.
Eu tenho sido
barro, que a vida vem moldando rumo a algo. A música tem sido um veículo
abençoado para cumprir esse propósito. O fado tem sido a linguagem. Os músicos,
a família. Os compositores, poetas, agentes, produtores, promotores, assistentes
os alicerces e os agentes da mudança.
Mas o Público, quem
ouve, quem recebe, quem me precisa, quem vem, quem dá, quem significa os meus
dias, é, na verdade, a minha seiva. A razão. O motivo.
Vocês.
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